Se você é contra a proibição da venda legal de armas como forma de combater a violência, então é favorável a que a população se arme. Se defende o princípio constitucional da presunção da inocência, então é conivente com a impunidade. Se acredita que Bolsonaro tem o direito de dizer suas tolices, então é simpático a suas idéias e tem certo receio de admitir. Se apóia mudanças no Código Florestal, então quer devastar as florestas. Se considera inconstitucional a revisão da Lei de Anistia, então é um defensor da tortura.
Assim anda o debate público no Brasil: ou a gente concorda com os donos da opinião e dobra os joelhos no altar da metafísica influente ou é uma besta ao quadrado, agente da barbárie política, social e moral. E perde, pois, o direito de existir. Afinal, o que dizer de seres que se alinham com o armamento, que se perfilam com a impunidade, que engrossam o coro dos preconceitos, que devastam a natureza e que acolhem torturadores? Gente assim não deve ter o direito de existir, certo? Precisa ser, como diria o Apedeuta, “extirpada” da vida nacional.
A cada dia causa mais espécie fazer a defesa de uma lei ou de um princípio da Constituição como norma, baliza, marco ou referência a orientar a sociedade como um todo, a lhe dizer onde é o norte — e o sul, se quiserem — dos seus anseios, ainda que a sua aplicação, ainda que seu exercício, ainda que seu triunfo nos desagrade particularmente. Leis não foram feitas para um homem ou um grupo de homens, mas para todos, e é só por isso que são elas, nas democracias, e não a força física, a maior garantia de um indivíduo. Leis são boas quando não enxergam a quem punem ou protegem — do contrário, o que se tem é discricionariedade. E não existe a discricionariedade “do bem”, como andou pregando por aí certo “ativismo judicial” que, no fundo, é só depredação da Justiça. “Mas, então, é o imobilismo!”, gritará alguém. Não! As democracias prevêem as formas por meio das quais se muda o arcabouço jurídico.
Chamo a atenção neste texto para a questão legal porque o absurdo é tal que hoje se pode ser malvisto na imprensa, no Judiciário, no Ministério Público, no Congresso e até no STF simplesmente por fazer a defesa da lei. Quando a Polícia Federal deu início àquelas operações espetaculosas, algumas delas de braços dados com franjas do Judiciário, eivadas de ilegalidades, houve quem aplaudisse: finalmente os ricos também eram vítimas das mesmas ilegalidades de que eram os pobres! O Brasil construía a igualdade à sua maneira: EM VEZ DE OS DIREITOS CONSTITUCIONAIS DOS POBRES PASSAREM A SER RESPEITADOS, DESRESPEITAVAM-SE TAMBÉM OS DOS RICOS PARA PASSAR À OPINIÃO PÚBLICA A IDÉIA DE QUE ELES TAMBÉM CHORAM!
Em suma, não se tratava exatamente de fazer justiça, mas de vender uma idéia de reparação moral com base no arranca-rabo de classes. Como a imprensa resolveu entrar na festa, porque era cliente dos “furos de reportagem” dos agentes da ilegalidade na polícia e na Justiça, os “ilegalistas do bem” resolveram seguir adiante, até serem brecados nos tribunais superiores. E então se grita: “Impunidade!”. Não! É só a legalidade. Se ela é ruim, mude-se a lei.
Falo bastante sobre o tema porque ele me fascina; sem o triunfo da lei e a garantia do seu direito, leitor, como botar o nariz fora da porta? Ocorre ao bacaninha da redação que defende expedientes oblíquos para punir as pessoas más que isso não é diferente de alguém lhe tomar a carteira, assaltar o carro ou lhe dar um pé no traseiro na rua? Se a lei não existe, então tudo é permitido; então é o estado da natureza, e cada um se vire como puder. Vale para o pobre; vale para o rico. Aliás, numa sociedade em que nem os ricos são respeitados — e escrevo “nem os ricos” porque, obviamente, têm os melhores advogados —, a gente imagina como andam os pobres, não é mesmo?
Estendi-me sobre a questão do direito porque, como disse, o tema me atrai, mas nem era a minha intenção, não. O que mais me ocupa hoje em dia é fazer o debate de valores. Por que algumas garantias, vá lá, clássicas de uma democracia de direito passaram a valer tão pouco e estão hoje tão sujeitos à especulação? Porque somos monitorados por uma espécie de “Observatório da Justiça Legítima” em oposição àquilo que seria a “Justiça Legal”. E quem legitima esse “legítimo”? Grupos de pressão, ONGs, sindicatos e… imprensa! O mundo passa a ser pensado a partir do fim. Queremos algumas coisas que são boas, belas e justas? Queremos! Então os meios estão absolvidos, especialmente quando se investe na fantasia de que, de um lado, estão aquelas pessoas malvadas, que nem deveriam existir, e, do outro, os “salvadores da humanidade”.
A morte do pensamento
Isso é a morte do pensamento! Já não interessa mais o conteúdo das proposições: a disputa não se dá entre idéias díspares, mas entre monopolistas da virtude e monopolistas do vício. A distorção não se verifica apenas no Brasil, não! Querem um exemplo? Fico a imaginar o que não se estaria dizendo de George W. Bush se ele tivesse levado a ONU a fazer ou a aprovar intervenções armadas em países para apoiar um dos lados de uma guerra civil. Essa é a política que os EUA de Barack Obama promovem hoje nas Nações Unidas, que ou tornam suas tropas aliadas armadas de milícias assassinas, como na Costa do Marfim, ou endossa intervenções amalucadas como a que está em curso na Líbia. A “nova ordem” desse pacifista adota grupos paramilitares como agentes da civilização democrática!
Não vivemos dias particularmente iluminados lá ou aqui. Nada de catastrofismo! Já houve tempos melhores certamente, mas também já os houve piores. Sobreviveremos. Mas que é difícil manter acesa a chama da razão em meio à ventania provocada pelo humanismo obscurantista, ah, isso é! A gente resiste. A gente é forte!
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