Alce Negro
Fala é um livro fruto do encontro, ocorrido em 1930, de John Neihardt com um ancião índio Sioux Oglala.
Neihardt andava à procura dos remanescentes do movimento messiânico indígena
que culminou no massacre de Wounded Knee, em 1890. Mais especificamente, andava
à procura de algum "medicine-man" que houvesse atuado como guia
espiritual daquele movimento. Encontrou Alce Negro, ... que já estava à sua espera, aguardando
a chegada de um ouvinte a ele destinado...
Exímio "contador de
histórias", Alce Negro encarna à perfeição as tradicionais personagens encarregadas da transmissão oral da cultura, espécie de oráculos, por assim
dizer, comuns nos povos antigos.
Assim, suas narrativas não são meras reminiscências de um idoso, ou enumeração sistemática de
fatos históricos relevantes; antes, são elaborações intencionadas,
vivificadas pela sua experiência, conhecimento e sabedoria. Produzem bem mais
do que uma satisfação da curiosidade, ou um encantamento com o diferente,
também ali presentes, mas transmitem deliberadamente um discernimento dos fatos,
além dos fatos em si - o que vem a ser, afinal, o seu real propósito e o exercício de sua arte de educador.
Segue uma amostra, para
apreciação, com a ressalva de que o conjunto da obra é muito mais abrangente do
que possa fazer supor este pequeno conto:
(...) ainda me lembro de uma
estória que ele me contou acerca de um jovem lakota chamado Cavalo Alto (High
Horse), e das dificuldades por que passou para conseguir a rapariga que queria.
Uatani disse-me que tudo aconteceu exatamente como ele me contou, o que é bem
provável. Mesmo que não tenha sido assim, podia tê-lo sido. É essa história que
te vou contar agora.
O Namoro de Cavalo Alto
Nos velhos tempos não
era tarefa fácil arranjar uma rapariga para casar. Muitas vezes era mesmo
bastante penoso e implicava grande espírito de sacrifício. Imaginemos que eu
sou um jovem e vi uma rapariga tão bonita que fico doente de amor só de pensar
nela. Não posso simplesmente chegar ao pé dela, dizer-lhe o que sinto, e casar
com ela se ela estiver de acordo. Primeiro tenho de usar toda a minha astúcia
para conseguir falar com ela, e isto é só o começo de uma longa história.
Imaginemos que gosto
tanto de uma rapariga que ela não me sai da cabeça, mas que ela não me liga e
os pais a vigiam de perto. Vou-me sentindo pior a cada dia que passa; então,
talvez me aproxime furtivamente do tipi dela, ao abrigo do escuro, esperando
que ela saia. É possível que ali passe toda a noite, sem dormir, e que ela não
saia do tipi, fazendo-me sentir ainda pior. Também pode acontecer que me
esconda num arbusto perto da nascente onde ela vai buscar água, e quando ela
surgir, se ninguém estiver a ver, salto-lhe ao caminho, retenho-a e faço com
que ela me ouça. Fico desde logo a saber se ela gosta de mim, pois, se for esse
o caso, há-de ficar embaraçada e, possivelmente, não dirá uma palavra e nem
sequer me olhará de frente. Então deixo-a ir e fico à espreita da oportunidade
para me encontrar com o pai a sós, para lhe dizer quantos cavalos lhe posso dar
em troca de sua bela filha. Nessa altura hei-de encontrar-me em tal estado que
seria capaz de lhe oferecer todos os cavalos do mundo se os tivesse.
Voltando a Cavalo
Alto, havia lá na aldeia uma rapariga tão bonita aos olhos dele que andava
doente de tanto pensar nela, e cada dia pior. A rapariga era bastante tímida e
os pais estavam-lhe muito presos, pois já não eram jovens e ela era filha
única. Vigiavam-na de perto durante todo o dia e arranjavam maneira de a terem
segura também de noite, enquanto dormiam. Estavam de tal modo obcecados com ela
que lhe fizeram um leito de peles, e depois de saberem que Cavalo Alto andava a
tentar aproximar-se dela atavam-na à cama com tiras de pele durante a noite
para que ninguém a levasse enquanto dormiam, pois também não tinham a certeza
se a rapariga não estava à espera de ser levada. Depois de rondar nas
imediações durante algum tempo, escondendo-se à espera da rapariga e cada vez
mais desesperado, Cavalo Alto conseguiu finalmente apanhá-la sozinha e
obrigá-la a falar com ele, ficando a saber que ela talvez gostasse um bocadinho
dele. A situação, já se vê, não melhorou muito; bem pelo contrário, agravou-se
ainda mais, mas agora Cavalo Alto sentia-se forte como um bisão e foi falar
diretamente com o pai, dizendo-lhe que gostava tanto da filha que lhe oferecia
dois bons cavalos por ela, um novo e o outro ainda em muito bom estado. Mas o
ancião limitou-se a fazer um gesto com a mão, dando a entender a Cavalo Alto
que este devia parar de dizer tolices e ir-se embora.
Cavalo Alto ficou
mais desesperado que nunca. Entretanto, um outro jovem disse que lhe emprestava
dois cavalos que mais tarde deveriam ser retribuídos. Cavalo Alto foi de novo
ter com o ancião, oferecendo-lhe desta vez quatro cavalos pela filha, dois
novos e os outros dois ainda com vigor. Mas o pai da rapariga voltou a agitar a
mão sem proferir palavra. Cavalo Alto voltou a rondar o local até conseguir
falar novamente com a rapariga, pedindo-lhe que fugisse com ele, dizendo-lhe
que se ela não acedesse ele era capaz de morrer ali mesmo. Mas ela não acedeu,
dizendo-lhe que queria ser comprada como uma mulher que se preza. Por aqui se
vê que ela também se tinha em boa consideração.
Esta recusa pôs
Cavalo Alto em tal estado que deixou de comer, caminhando tão cabisbaixo que
dava a ideia de poder tombar e morrer a qualquer momento. Veado Vermelho (Red
Deer) e Cavalo Alto eram grandes amigos, andando quase sempre juntos. Reparando
no comportamento do amigo, perguntou-lhe Veado Vermelho: “Primo, o que tens tu?
Andas mal da barriga? Tens ar de quem está para morrer.” Então Cavalo Alto
contou-lhe o que se passava, dizendo-lhe que não conseguiria viver muito mais
se não casasse depressa com a rapariga. Depois de refletir durante algum tempo,
Veado Vermelho falou assim: “Primo, tenho um plano; se fores homem para fazer o
que eu disser há-de dar tudo certo. Está visto que ela não vai fugir contigo e
que o pai não aceita quatro cavalos, quando quatro cavalos é tudo que lhe podes
oferecer. A única alternativa que te resta é raptá-la e depois fugir com ela.
Regressas passado algum tempo, e nessa altura o pai já nada pode fazer porque
ela será tua mulher. Aliás, o mais provável é que ela queira mesmo que a leves
à força.”
Puseram-se os dois a
acertar os pormenores, dizendo Cavalo Alto que gostava tanto da rapariga que
era homem de fazer tudo o que Veado Vermelho ou alguém lhe dissesse para fazer.
Era noite alta quando os dois se aproximaram furtivamente do tipi da rapariga,
pondo-se à escuta até terem a certeza de que lá dentro todos dormiam
profundamente. Chegado o momento, Cavalo Alto rastejou para dentro do tipi com
uma faca na mão, com a qual deveria cortar as tiras de pele que amarravam a
rapariga, enquanto Veado Vermelho arrancava as estacas que seguravam o tipi
daquele lado, para depois ajudar a arrastar a jovem para o exterior e
amordaçá-la. De seguida, tudo o que Cavalo Alto tinha a fazer para ser feliz
para o resto da vida era pô-la à sua frente em cima do cavalo e fugir.
Quando Cavalo Alto se
infiltrou no tipi estava de tal modo nervoso, ouvindo o coração bater tão alto,
que teve medo de acordar os pais. Mas tal não sucedeu, e passado pouco tempo
começou a cortar as tiras de pele. Sempre que cortava uma ouvia-se um estalo
que quase o matava de medo. Já havia cortado todas as tiras até às coxas da
moça quando, num gesto de maior nervosismo, a faca se lhe escapou, picando a
rapariga, que lançou um enorme grito. Os pais saltaram da cama e puseram-se
também a gritar. Por esta altura já Cavalo Alto saíra do tipi e se pusera em
fuga com Veado Vermelho, mais parecendo duas corças. Os pais e alguns outros foram
atrás dos jovens, mas estes haviam-se sumido no escuro e ninguém soube quem
eram.
Se já alguma vez
desejaste uma rapariga bonita, deves adivinhar o estado lamentável em que Cavalo Alto se
encontrava nesse momento. Sentia-se profundamente infeliz, tendo o aspecto de
quem vai morrer à fome, isto se não caísse morto a qualquer momento. Veado
Vermelho continuou a pensar no caso e, passados alguns dias, foi ter com Cavalo
Alto e disse-lhe assim: “Primo, não desanimes! Tenho outro plano e tenho a
certeza de que, desta vez, se tiveres coragem, tudo vai dar certo.” Cavalo Alto
respondeu-lhe assim: “Tenho mais do que coragem para fazer tudo o que alguém
possa imaginar, desde que consiga ficar com a rapariga.”
Depois de se terem
afastado da aldeia, Veado Vermelho disse a Cavalo Alto para este se despir
completamente. De seguida pintou o corpo do amigo todo de branco com listras
pretas por cima e círculos, também eles pretos, à volta dos olhos. Cavalo Alto
ficou com um aspecto tão assustador que Veado Vermelho, depois de acabada a
pintura e de olhar bem para o amigo, não deixou de se assustar um bocadinho.
“Agora, se voltares a ser surpreendido, ficarão tão assustados que hão-de
pensar que és um espírito mau e terão medo de ir atrás de ti”, explicou Veado
Vermelho.
Já a noite ia alta e
todos dormiam a sono solto quando os dois se aproximaram novamente do tipi da
rapariga. Tal como da primeira vez, Cavalo Alto infiltrou-se no tipi de faca na
mão, enquanto Veado Vermelho esperava do lado de fora, pronto para arrastar a
moça para o exterior e amordaçá-la quando o amigo tivesse cortado todas as
tiras. Cavalo Alto aproximou-se silenciosamente do leito da jovem e começou a
cortar as tiras, sem deixar de pensar: “Se me vêem assim com esse aspecto ainda
me dão um tiro.” A rapariga estava com o sono inquieto, às voltas na cama, e
Cavalo Alto progredia lentamente e com cuidado por causa do barulho que as
tiras faziam ao serem cortadas. Mas algum barulho ele deve ter feito, porque a
mãe da jovem acordou de repente, dizendo para o marido: “Acorda homem! Está
alguém dentro do tipi!” O pai, no entanto, estava bastante ensonado e não
queria ser incomodado. “É claro que está alguém dentro do tipi”, replicou ele,
“Vê lá se dormes e não me aborreças.” E voltou a ressonar.
Cavalo Alto ficou de tal modo assustado que se quedou colado ao chão o
mais que podia. Mas, como compreendes, há muito tempo que ele não dormia bem
por causa da rapariga, e enquanto ali esteve deitado à espera de ouvir a mulher
ressonar esqueceu-se de tudo, até da beleza da jovem. Veado Vermelho, que
esperava do lado de fora o momento de intervir, não parava de pensar no que
estaria a acontecer dentro do tipi, mas não se atreveu a chamar pelo amigo. Com
o dia prestes a nascer, Veado Vermrlho viu-se obrigado a abandonar o local com
os dois cavalos que trouxera para o amigo e para a rapariga, porque se
arriscava a que alguém desse com ele.
Quando a luz começou a entrar no tipi e a rapariga acordou, vendo um
animal aterrador, todo branco e com listras negras, jazendo adormecido ao lado
da cama, pôs-se a gritar, logo seguida pelos pais. Cavalo Alto levantou-se de
um salto, assustado de morte, quase deitando o tipi abaixo na fuga. De toda a
aldeia começou a acorrer gente armada com espingardas, arcos e machados, tudo
aos gritos. Mas Cavalo Alto corria agora tão depressa que mal tocava com os pés
no chão, e o aspecto dele era tão assustador que todos se afastavam do seu
caminho, deixando-o fugir. Alguns mais destemidos quiseram disparar sobre ele,
mas os outros impediram-nos, dizendo que podia tratar-se de um ser sagrado e
que matá-lo podia trazer alguma desgraça. Cavalo Alto fugiu em direção ao rio,
não muito longe dali, e no meio da vegetação descobriu um tronco oco onde se
escondeu. Passado algum tempo, uns quantos homens aproximaram-se do local, e
Cavalo Alto ouviu-os dizer que podia tratar-se de algum espírito mau que saíra
da água e que para lá tinha voltado.
Nessa manhã houve ordens para levantar o acampamento e seguir viagem, o
que aconteceu com Cavalo Alto escondido no seu tronco oco. Veado Vermelho, que
assistira a tudo do seu tipi, tentava parecer tão surpreendido e assustado como
os outros. Assim, quando todos se puseram em marcha, voltou sorrateiramente ao
local onde vira desaparecer o amigo. Uma vez aí chegado, pôs-se a chamar pelo
companheiro, obtendo resposta pronta, pois Cavalo Alto reconhecera-lhe a voz.
Depois de ajudar o amigo a lavar a tinta do corpo, sentaram-se os dois na
margem a falar dos problemas de cada um. Cavalo Alto disse que nunca mais voltaria
à aldeia enquanto fosse vivo e que nada se importava com o que lhe acontecesse,
acrescentando que ia enveredar sozinho pela senda da guerra. “Nem penses que
vais para a guerra sozinho, primo, pois eu vou contigo”, disse-lhe Veado
Vermelho.
Veado Vermelho fez todos os preparativos e nessa noite entraram os dois
na senda da guerra. Após vários dias de caminho, avistaram um acampamento Crow
(os Crows e os Lakotas eram inimigos) ao pôr-do-sol. Esperando pelo cair da
noite, aproximaram-se furtivamente do local onde os cavalos pastavam, mataram o
guarda que, imaginando os lakotas bem afastados dali, estava longe de pensar em
inimigos, e puseram em fuga cerca de uma centena de cavalos. Conseguiram um bom
avanço, visto que os animais debandavam a galope, e só de manhã é que os
guerreiros crow conseguiram recuperar alguns cavalos. Veado Vermelho e Cavalo
Alto conduziram a manada durante três dias e três noites até alcançarem a
aldeia do seu povo. Uma vez no acampamento, levaram os cavalos diretamente até a
entrada do tipi da rapariga. O pai estava lá dentro e Cavalo Alto chamou-o,
perguntando-lhe se aqueles cavalos eram suficientes para ficar com a rapariga.
O ancião, desta vez, não fez qualquer gesto com a mão. Não eram os cavalos que
ele queria. O que ele queria era um filho que fosse um homem a valer e que
prestasse para alguma coisa.
E assim Cavalo Alto acabou por conseguir a rapariga, e eu acho que ele
bem a mereceu.