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23 de fev. de 2012

Vidas no torvelinho

por Leandra Felipe

Aos 27 anos, a mecânica de automóveis Sara Morales acumula recordações durante os 10 anos em que viveu em um acampamento das Forças Revolucionárias da Colômbia (Farc): abuso sexual, agressões físicas, o apoio da comunidade rural para tirar seus filhos recém-nascidos do ambiente da guerrilha e a corajosa desmobilização.

Quando foi forçadamente recrutada pela guerrilha perto Barrancabermeja (município do departamento de Santander) onde vivia com os irmãos e a mãe, ela ainda gostava de brincar de bonecas. "Tiraram meus brinquedos e me colocaram um fuzil nas mãos", reflete.

E completa: "Mas essa é a realidade do recrutamento de crianças. Me lembro bem do caminhão levando a gente. Eu e mais umas 40 crianças". Não há dados muito recentes sobre a quantidade de crianças em poder de grupos armados ilegais. Mas um levantamento das Nações Unidas (ONU) de 2009 mostra que essa quantidade varia entre oito e 11 mil crianças.

Em 1996, quando Sara foi recrutada, essa era uma realidade ainda mais comum. "Agora o governo está mais atento, antes era muito, muito pior", comenta Sara.

Ela lembra que o treinamento começava assim que eles chegavam ao acampamento. "Tinha a parte de doutrina para aprender fundamentos socialistas e a parte do treinamento militar. Esse era pesado. Uma vez me cansei e comecei a chorar e o comandante brigou comigo. Eu disse que era só uma menina, mas ele se enfureceu e me deu um chute no rosto com o coturno", relembra.

Quatro anos antes de ser recrutada, Sara havia perdido seu irmão mais velho, assassinado por grupos paramilitares. "A gente não tinha muita escolha. Eu sabia que ali não era meu lugar, mas não tinha como fugir de lá tão pequena", conta.

Aos 15 anos de idade, Sara foi selecionada para trabalhar na rádio das Farc. O grupo mantém uma emissora clandestina que usa para se comunicar com as frentes espalhadas pelo país.

"Eu gostei muito de trabalhar na rádio, primeiro porque assim ficava longe das armas e segundo porque os camponeses e agricultores também escutavam a gente e eu gostava disso", lembra Sara, que sonha em trabalhar de novo como comunicadora quando terminar os estudos.

A maternidade

Sara conta que durante a infância sofreu agressões sexuais nos acampamentos. "Isso é normal lá dentro. A gente se protege como pode", relata.

"Mas lá, a gente também faz amigos ou namora", diz rindo. Sara se envolveu com um companheiro de guerrilha, um jovem de sua cidade natal que também havia sido recrutado. Quando completou 18 anos, nasceu sua primeira filha, hoje com nove anos. Aos 20, o segundo, um menino que agora tem sete.

Sara disse à BBC Brasil que não queria seus filhos naquele ambiente e nem que sofressem o que ela sofreu.

"Os camponeses vizinhos ao acampamento gostavam de mim e sabiam que eu não queria pegar em armas. Então, quando meus filhos fizeram um mês de nascimento, eu lhes entreguei e dei todas as referências da cidade onde minha mãe morava para que eles os entregassem lá", recorda.

Mesmo consciente que aquela era a melhor decisão, Sara fala do sofrimento sem os filhos. "Quando eu entreguei minha filha e meu filho eu sofri uma dor terrível. Foi meu pior momento", lamenta.

Além do sofrimento pela ausência, Sara conta que sofria punições também: "Eu tirava meus filhos do acampamento sem permissão do comando. Claro que eu era penalizada, fisicamente ou com privações", conta.

A fuga
Em 2007, quando tinha 22 anos, dois depois do nascimento do filho mais novo, Sara diz que havia uma operação muito grande na região do acampamento e o grupo se deslocou um pouco. "Eu sabia que não estava longe da minha cidade", diz.

Sara diz que um dia um dos comandantes tentou violentá-la sexualmente. "Eu reagi e atirei na perna dele. Ali eu já sabia que ou fugia ou morria", reflete.

Ela começou a se afastar do acampamento, mas foi perseguida e atingida por dois tiros, um na coxa direita e um na mão. "Naquela hora eu só me lembrava da minha mãe, que já estava doente. Eu pedia a Deus, forças porque queria sair dali e encontrá-la".

Mesmo ferida, Sara conseguiu se esconder. Atravessou lagoas, rios e a selva à noite na montanha. Foi ajudada por camponeses e já sem o uniforme conseguiu chegar à Bucaramanga, capital de Santander, onde fica sua cidade natal, Barrancabermeja.

Sara procurou a polícia e se reintegrou à sociedade. Ela ainda conseguiu passar um tempo com sua mãe, que faleceu pouco depois. Seus filhos já estavam com sua família quando regressou.

O pai das crianças também abandonou a guerrilha e eles são amigos. "No ano passado, ele conseguiu dar seu sobrenome às crianças", conta cheia de orgulho.

Atualmente, Sara vive com o irmão mais novo e os dois filhos em Bogotá. Sempre que pode, atua como voluntária em campanhas pela paz e pelo fim do conflito. Ela também já participou de um projeto chamado "Canta con migo por la reintegración", onde canta com um grupo de desmobilizados de diversos grupos armados, que também se reintegraram à sociedade.

Analisando sua vida hoje ela se diz agradecida a Deus. "Eu não tenho ódio do que passou, mas tenho um desejo grande de que este país mude para todos e seja melhor lá na zona rural, além das montanhas", argumenta.

E finaliza: "Se eu disser que é fácil, estou mentindo. Minha infância que já era difícil, foi totalmente usurpada quando entrei no acampamento. Mas nunca perdi a esperança e eu tinha caráter. Isso me salvou".

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