Reinaldo
Azevedo comemorando o aniversário de seu blog:
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O pão nosso da alegria
O pão nosso da alegria
Neste mês, o blog que mantenho na VEJA Online completa seis anos.
A página é acessada entre 100 000 e 150 000 vezes por dia — com um pico de
234.640. Nesse tempo, já foram ao ar quase 35 000 posts e 1,8 milhão de
comentários. Acusam-me algumas pessoas de obsessivo, e os números não as
deixam mentir. Tornei-me dependente do diálogo cotidiano que mantenho com
milhares de leitores Brasil afora — e um bom tanto espalhado aí por esse
mundão. Se não posso, a exemplo de Mário de Andrade, compor um “Lundu do
Escritor Difícil”, sei que não sou muito fácil, especialmente porque gosto de
escrever textos longos, de intercalar frases, de coordenar orações subordinadas
que se distanciam perigosamente da principal, de explorar recursos já
emperrados da sintaxe, de brincar com o meu apreço pela ordem.
Diziam-me nos primórdios: “Assim você não vai longe; internautas
não têm tempo e paciência para esse estilo”. Sou grato pela confiança até dos
que odeiam a minha página com comovente dedicação. Não raro, o amor pode se
distrair e cair presa, ainda que por um lapso, de outros encantos. Mas o ódio é
fiel porque dedicado escravo do ressentimento. O amor é altivo e, liberto,
esquiva-se às vezes para ser reconquistado. O ódio se oferece todos os dias ao
desprezo para se nutrir do bem que não pode alcançar. Aos que amam, tenho de
lhes fazer todos os dias a corte com textos novos e primícias, como o enamorado
cativo. Os que odeiam me pedem bem menos: basta que eu exista para que tenham
razão de ser.
Os que amam não buscam apenas a minha luta cotidiana com as
palavras, que o poeta Carlos Drummond de Andrade já chamou de “a luta mais vã”.
Também se alimentam da minha paixão, que é a deles, pela divergência, pelo
debate, pelo contraditório. E o amor pode ser flamejante e se fazer fogo que
arde pra se ver, sim! E recorre a paradoxos para expor todos os relevos de seu
contentamento descontente. Escrevo páginas para os que têm sede de justiça e
para os que apreciam a lógica com método. Conquistei — digo-o com um
orgulho maior do que possa abrigar — leitores que me pegam pelo braço, que
são os meus Virgílios nos círculos do inferno e os anjos que me livram de
diabólicos ardis, como a alma de Fausto, resgatada pelos céus na hora final. Os
meus leitores me ensinaram a ser uma pessoa melhor.
É possível que outro veículo pudesse abrigar o blog ou este texto,
mas é a VEJA que faz uma coisa e outra. Nestes seis anos, ainda que a vanguarda
do retrocesso tentasse avançar e vencer, clamando, como a Rainha de Copas,
“cortem-lhe a cabeça, cortem-lhe a cabeça”, constatei que, nesta revista, a
liberdade de pensamento não é mera dama de companhia da história: presente, mas
servil; educada, mas obediente; altiva, mas com autonomia não mais do que
derivada. Os fundamentos do estado democrático e de direito é que têm a tutela
de nossos pensamentos, de nossas utopias, de nossas prefigurações.
Nada excita mais a fúria dos vampiros morais do stalinismo e do
fascismo que a liberdade que se exerce sem pedir licença a aiatolás da
ideologia. Uns estão convictos de que sua leitura de mundo foi alçada à
condição de uma teologia que não pode ser confrontada. Outros entendem que
ganharam nas urnas o direito de solapar os fundamentos daquilo mesmo que lhes
deu expressão: as garantias democráticas. Satanizam, então, a divergência e a
convicção alheia como expressões do sectarismo, do preconceito e do ódio.
Atribuem a seus adversários aquilo que eles próprios prodigalizam. Quantas
vezes já não fui acusado de “intolerante” não porque excitasse a fúria de
eventuais algozes de meus adversários de pensamento, mas porque, ao discordar
de uma falsidade influente vendida como verdade, desafinei o coro dos
contentes.
Escrevi em 2006 um artigo para o Globo em que citava uma epígrafe que
está na edição inglesa (Penguin Books) do livro “The Captive Mind”, do
poeta polonês Czeslaw Milosz, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1980.
Relembro-a aqui. É um ditado ou, talvez, um aforismo espichado, atribuído a um
velho judeu da Galícia: “Quando alguém está 55% certo, isso é muito bom e não
há discussão. Se alguém está 60% certo, isso é maravilhoso, é uma grande sorte,
ele que agradeça a Deus. Mas o que dizer sobre estar 75% certo? Os prudentes já
acham isso suspeito. Bem, e sobre estar 100% certo? Quem quer que diga estar
100% é um fanático, um facínora, o pior tipo de velhaco”.
Os que se arvoram em donos do pensamento tentam nos fazer duvidar
de nossas convicções não porque tenham os melhores argumentos ou porque dotados
de uma razão científica superior, que desmoraliza nossos preconceitos ou nossas
impressões, mas porque dominam o que chamo “aparelhos sindicais do pensamento”.
Ainda que os fatos e a verdade da ciência possam estar do nosso lado, tentam se
impor porque supostamente mais humanistas do que nós, mais justos do que nós,
mais sonhadores do que nós, mais bondosos do que nós, mais “amigos do povo” do
que nós.
Há quase três meses, as harpias do oficialismo mais subserviente,
da imoralidade mais chã, da prepotência mais rastaquera têm exibido as suas
garras financiadas para tentar intimidar o jornalismo independente, que não
deve vassalagem aos donos do poder, que está comprometido com os fatos, que
busca a verdade, anseio de milhões de pessoas, ainda que uns poucos não
queiram. São prestadores de serviço que se disfarçam de jornalistas; amantes do
dinheiro vivo que se alimentam de ideias mortas; reputações que encontram no
limo a justa recompensa moral por sua vileza intelectual, pelo baixo propósito
de seus anseios, pela estupidez falastrona de suas predições. Trata-se, em
suma, de uma variante do poder arbitrário formada por gente paga pelo erário
para assediar moralmente o jornalismo e os jornalistas que estão comprometidos
com os fatos e com o conjunto de valores que definem o estado democrático e de
direito.
É claro que meu blog não poderia escapar ao radar desses seres
trevosos. Na periferia do pensamento, não raro ignorados pela relevância,
esmagados pela própria pequenez, gritam, sem que possam apontar um só texto que
justifique a sua inútil histeria: “Vejam como ele odeia em vez de debater!
Cortem-lhe a cabeça!”. Fazem-no sem contestar uma só das teses ou das
evidências que apresento, exibindo uma assombrosa ignorância e excitando, eles
sim, uma súcia de outros ignorantes e truculentos, que tentam transformar a
vulgaridade, o baixo calão, a ignomínia e a ofensa em categorias de pensamento.
São os zumbis de um passado que tenta não passar. Mas sabem que já morreram.
Em outubro de 2008,
a Editora Record convidou-me para lançar um livro com
uma coletânea de artigos do blog, que resultou em “O País dos Petralhas”, que
vendeu mais de 50 000 exemplares. Em 2010, foi a vez de “Máximas de Um País
Mínimo”, um livrinho de frases, que chegou à marca dos 20 000. Acabo de assinar
um contrato para fazer “O País dos Petralhas II”. Ainda não sei se o subtítulo
será “A Luta Continua” ou “O Inimigo agora é o Mesmo”, parafraseando, pelo
avesso, o “Tropa de Elite II”. Nos mais de 400 (!) artigos do Volume
I — e assim será no II —, o debate de ideias, o exercício da divergência,
o prazer da discordância.
Quero dizer à vanguarda do atraso que ela nem avança nem vence. É
de Rosa Luxemburgo, uma socialista intelectualmente honesta dentro do seu
equívoco — e isso quer dizer “ingênua” —, uma das frases que tomo como
divisa: “Liberdade é, apenas e exclusivamente, a liberdade dos que pensam de
modo diferente”. Rosa Luxemburgo esfregou a frase nas fuças de Lênin e Trotsky
ao perceber que o primeiro ato dos facinorosos travestidos de libertários seria
golpear a Assembleia Constituinte.
Não, não, caras e caros! Não tomei borrachada nas ruas em defesa
da democracia nem me expus tão cedo a riscos consideráveis para que agora
intolerantes viessem a cobrar caro por aquilo que a Constituição (que eles se
negaram a homologar) me dá de graça: o direito à divergência e à verdade. A
verdade que quero não é patrocinada pelo estado nem definida por comissário com
atestado de pureza ideológica.
Quero a verdade precária do suceder dos dias.
Quero a verdade eterna reforçada pelas verdades novas.
Quero a verdade que nasce do exercício da liberdade.
A liberdade é o “Pai Nosso” do civilismo, o pão nosso da alegria!
Quero a verdade eterna reforçada pelas verdades novas.
Quero a verdade que nasce do exercício da liberdade.
A liberdade é o “Pai Nosso” do civilismo, o pão nosso da alegria!
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