João Pereira Coutinho
NÃO SE iluda, leitor: tudo aquilo que você pensa saber sobre Portugal e os portugueses está errado.
Verdade que são os próprios lusos a cultivar a imagem enganadora: um povo triste, melancólico, com pouca “autoestima”. Cantam o fado, não matam o touro, esperam por el-rei d. Sebastião, perdido nas batalhas de África – e suspiram pela grandeza do Império passado.
Basta visitar uma livraria de Lisboa para encontrar a indústria profícua da lamentação nacional. José Gil, filósofo, escreveu em 2004 “Portugal, Hoje – O Medo de Existir”.
Dizia Gil que os portugueses não afirmam nada, não se afirmam em nada; não “inscrevem” na existência pessoal ou coletiva nenhum gesto ou acontecimento que transforme as suas pobres vidas. Esse “nevoeiro” ontológico, essa “doença”, seria herança da ditadura de Salazar.
O livro virou best-seller. Nenhum espanto. Os portugueses gostam de consumir o culto da sua própria infelicidade. Às vezes penso que as livrarias portuguesas deveriam ter uma seção de “Autoflagelação”, tal como os brasileiros têm prateleiras de “Autoajuda”.
Há quem veja nisso falta de autoestima. Eu vejo o contrário: excesso de autoestima, narcisismo infantil, negação terminal da realidade.
Quando um português chora a sua sorte, ele não espera apenas compaixão; espera, como os órfãos de Charles Dickens, que alguém tenha pena dele e o adote.
O problema não é psicológico; muito menos um produto do salazarismo. O problema é estruturalmente histórico e resume-se numa frase: a história de Portugal é uma história de adoções contínuas.
Não poderia ser de outra forma: com um território pequeno e periférico e um solo pouco promissor para a sua própria subsistência, a história portuguesa fez-se para fora. Em busca de salvações instantâneas.
África, Índia, Brasil: é possível escrever páginas notáveis sobre os descobrimentos. O heroísmo dos portugueses e o sacrifício celebrado por Camões ou Fernando Pessoa merecem admiração poética.
Mas essas páginas não devem esconder a fome e a pobreza que as precipitaram.
E não devem esconder que por cada navio de ouro e especiarias que chegava do Atlântico ou do Índico havia um reino que se despovoava; uma indústria que não se desenvolvia; uma agricultura rudimentar; e uma máquina do Estado gigantesca e perdulária que, ao contrário dos países do Norte, foi devorando os recursos dessas aventuras marítimas – e esmagando as expressões de independência e livre iniciativa fora da alçada do Estado.
Os vícios dos portugueses não são um produto do salazarismo; desde logo porque o salazarismo apenas prolongou, com os recursos típicos de uma ditadura, uma tradição patrimonialista que é indissociável da identidade do país.
É por isso que o português se confronta hoje com um dos momentos mais dramáticos da sua história. E dramático pela originalidade da situação: não existe mais África; não existe mais Índia; não existe mais Brasil. Não existem, no fundo, os balões de oxigênio que insuflaram vida nos pulmões dos lusitanos.
E se é verdade que a União Europeia foi o último balão de oxigênio, não é menos verdade que ele dá sinais de esgotamento.
Culpa de quem? Se ouvirmos os sábios habituais da tristeza lusitana, a culpa é da Alemanha e dos países ricos da União, que deixaram de ser “solidários” com os países pobres da periferia.
É uma tese apropriada para crianças, não para adultos.
Um povo adulto deveria saber que esse último balão de oxigênio se esgotou da mesma forma que se esgotaram todos os outros: pelo desperdício dos recursos que chegaram de Bruxelas; pelas dívidas ruinosas que a entrada no euro permitiu; pelo não investimento no desenvolvimento e na competitividade da economia interna. “Déjà-vu”.
E agora, quem nos adota?
Essa pergunta daria um bom fado. E é provável que, nos próximos meses, ou anos, com um país em recessão, desemprego recorde, conflitualidade social nas ruas e uma eventual expulsão do euro, se multiplique o número de livros em melancólica masturbação.
Não tenciono lê-los. Prefiro acreditar, nas horas de otimismo, que existem vantagens na crise corrente: um povo que viveu sempre do exterior está hoje condenado a regressar para casa. Não é grave.
Regressar para casa talvez seja a única forma de, por uma vez na vida, simplesmente arrumá-la.
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