por Demetrio Magnoli
A blogueira Yoani Sánchez, os aeroportos privatizados, os policiais amotinados - por três vezes, sucessivamente, o PT exercitou a arte da duplicidade, desfazendo com uma mão o que a outra acabara de fazer. Há mais que oportunismo na dissociação rotinizada entre o princípio da realidade e o imperativo da ideologia. A lacuna abissal entre um e outro sugere que, aos 32 anos, o maior partido do País alcançou um estado de equilíbrio sustentado sobre o rochedo da mentira.
Peça número 1: O governo brasileiro concedeu visto de entrada a Yoani Sánchez, enviando um nítido sinal diplomático, mas Dilma Rousseff se negou a pronunciar em Havana umas poucas palavras cruciais sobre o direito de ir e vir, enquanto seus auxiliares reverenciavam o "direito" da ditadura castrista de controlar os movimentos dos cidadãos cubanos. A voz do PT emanou de fontes complementares, que pautaram as declarações presidenciais na ilha. Circundando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, diversos tratados internacionais e a Constituição brasileira, o assessor de política externa Marco Aurélio Garcia qualificou como um "problema de Yoani" a obtenção da autorização de viagem. Ecoando o pretexto oficial castrista, a ministra Maria do Rosário (dos Direitos Humanos!) declarou que Cuba não viola os direitos humanos, mas é vítima de uma violação histórica, representada pelo embargo norte-americano.
O alinhamento automático do PT à ditadura cubana revela extraordinária incapacidade de atualização doutrinária. A social-democracia europeia definiu sua relação com o princípio da liberdade política por meio de duas experiências históricas decisivas: a ruptura com os bolcheviques russos em 1917 e o confronto com a URSS de Stalin na hora do Pacto Germano-Soviético de 1939. O PT, contudo, não é um partido social-democrata. A sua inspiração tem raízes em outra experiência histórica, instilada no seu interior pelas correntes castristas que formam um dos três componentes originais do partido. Tal experiência é o "anti-imperialismo" da esquerda latino-americana, uma narrativa avessa ao princípio da liberdade política.
Peça número 2: Contrariando o renitente alarido petista de condenação da "privataria tucana", o governo leiloou três aeroportos para a iniciativa privada, mas, ato contínuo, o PT regurgitou as sentenças ortodoxas que compõem um estribilho estatista reproduzido à exaustão. Uma nota partidária anunciou a continuidade da "disputa ideológica sobre as privatizações", enquanto o deputado Lindbergh Farias (PT-RJ) se enredava na gramática da hipocrisia para formular distinções arcanas entre "concessões" e "privatizações".
A explicação corrente sobre essa dissonância radical entre palavras e atos aponta as motivações eleitorais de um partido que descobriu as vantagens utilitárias de demonizar adversários indisponíveis para defender a própria herança. Há, contudo, algo além disso, como insinua uma declaração do presidente petista Rui Falcão, que classificou os "adversários" do PSDB como "privatistas por convicção". O diagnóstico não faz justiça ao governo FHC, mas oferece pistas valiosas sobre a natureza de seu próprio partido.
O PT confusamente socialista das origens pouco se importava com o destino das empresas estatais, engrenagens do capitalismo nacional tardio erguido por Getúlio Vargas e aperfeiçoado por Ernesto Geisel. O partido só aderiu à ideia substituta do capitalismo de Estado após a queda do Muro de Berlim. No governo, aprendeu toda a lição: a rede de estatais configura um sistema de vasos comunicantes entre a elite política e a elite econômica, servindo ao interesse maior de perpetuação no poder e a uma miríade de interesses políticos e pecuniários menores. Os aeroportos foram privatizados para conjurar o espectro do fracasso da operação Copa do Mundo. Ao largo do território das convicções, sempre podem ser deflagradas novas privatizações: afinal, o partido antiprivatista tem como ícone José Dirceu, uma figura que prospera exercendo a função de intermediário entre o poder público e grandes grupos empresariais privados.
Peça número 3: O governo reprimiu o movimento dos PMs da Bahia e o PT condenou os atos criminosos de suas lideranças, mas não caracterizou a greve de militares como motim, deixando entreaberta a vereda para voltar a surfar na onda de episódios similares em Estados governados pela oposição. Os precedentes são conhecidos. Em 1992, quando o pefelista ACM governava a Bahia, o atual governador petista, Jacques Wagner, solidarizou-se com os PMs grevistas. Nove anos depois, quando a Bahia era governada pelo também pefelista César Borges, foi a vez do deputado Nelson Pelegrino, hoje candidato do PT à prefeitura de Salvador, proclamar seu apoio à greve dos PMs baianos. Durante a greve parcial de PMs paulistas, em 2008, no governo "inimigo" de José Serra, o PT formou uma comissão parlamentar de defesa do movimento.
A clamorosa duplicidade tem sua raiz profunda no papel desempenhado pelos sindicalistas do PT. A partidarização petista do movimento sindical moldou um corporativismo sui generis, que substitui os interesses da base sindical pelos do partido. No sindicalismo tradicional, tudo se deve subordinar às reivindicações de uma categoria. No sindicalismo petista, as reivindicações da base sindical devem funcionar como alavancas do projeto de poder do PT. Hoje, os PMs da Bahia são classificados como criminosos; amanhã, nas circunstâncias certas, PMs amotinados serão declarados trabalhadores comuns em busca de direitos legítimos.
O pensamento duplo não é um acidente no percurso do PT, mas, desde que o partido alcançou os palácios, sua alma política genuína. A tensão entre princípios opostos é real, mas não explosiva. Num país em que a oposição renunciou ao dever de discutir ideias, o partido governista tem assegurado o privilégio de rotinizar a mentira.
2 comentários:
Acho que o principal problema do pensamento "conservative" do Brasil é que não sai da superfície. O PT, e o PSDB e todos os outros partidos também, são a conseqüência de um sistema e regime políticos inevitavelmente corruptos. Se olharmos com frieza é notável que a diferença entre o PT e o PSDB no governo é tênue. A disputa entre os dois partidos passa longe de uma disputa ideológica ou de projeto político. No mais, política externa não se faz nem nunca se fez norteada por direitos humanos, política externa é um jogo de interesses. Esperar isso do PT e comemorar as lambanças dos EUA em seus intervencionismos é tolo, ou quem sabe até cínico. O namoro do PT com Cuba, em minha opinião, é mais uma orientação política brasileira que tenta ganhar espaço na América Latina como a potência hegemônica em detrimento do antigo poder estadunidense do que qualquer outra coisa. Eu gosto do Magnoli, o livro dele "O Corpo da Pátria" é uma obra belíssima, estou com o "Uma gota de sangue" na minha lista. Mas ele ainda não chegou ao cerne do problema, e penso que isso se deve ao erro das premissas que adotou.
Verônica,
O que você chama de cerne do problema, me parece, é a sobrevivência.
Tanto os organismos individuais quanto as construções culturais sobrevivem num meio dotado de regras próprias, que não fomos chamados a elaborar...
A esse meio, estruturado por uma ordenação absolutamente impositiva, dá-se o nome de realidade.
Malemá vislumbramos o que ela seja, e quais as forças que nela atuam - e que a garantem. O conhecimento e domínio que alcançamos sobre algumas manifestações e fenômenos da natureza, ordinariamente, nos enche a bola; e como vivemos focados no conhecido, o poder que conquistamos deixa de referir-se àquele outro, do desconhecido, do qual, afinal, continuamos escravos.
O reconhecimento da vigência desse império é o que nos pode dar a verdadeira grandeza de nossa medida, e livrar-nos de ilusões, demências e estupidezes várias. Paradoxalmente, é uma tirania libertadora, sob o ponto de vista de que as concepções da realidade são prisões perceptivas. E daí decorre que a realidade não é concebível, em sua totalidade, a não ser como alguma humana tiraniazinha, - e que nossa essência real é imaterial, feita de consciência e percepção.
A interação dos organismos individuais e das construções culturais com as regras da realidade precisa ser a adequada, para que sobrevivam. Mas a força desconhecida e mortal que a tudo submete sua exigência real, ao menos por enquanto, só tem permitido, às forças vitais que se lhe contrapõem, que se reproduzam, para novas tentativas.
Nessa cosmogonia, somos objeto e sujeito de um acontecimento épico e universal, onde temos o nosso lugar de direito e de dever.
Viu no que dá falar de cerne do problema comigo?
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