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8 de jul. de 2010

Porquê o Estado não pode ser Mínimo


O cassino alimentício

Se alguém ainda tem dúvidas sobre a necessidade de uma nova regulamentação do sistema financeiro e a imposição de drásticas restrições à especulação, principalmente com produtos que têm impacto direto no bem estar das sociedades, como os alimentos e a energia, um artigo do jornalista inglês Johann Hari, no The Independent de 2 de julho ("How Goldman gambled on starvation"), deveria dirimi-las de vez. Em um texto contundente, ele descreve a maneira desavergonhada com que os especuladores financeiros promoveram a disparada dos preços alimentícios no período 2006-08, cujo resultado direto foi o agravamento da fome em um grande número de países pobres. Sua indignação é explícita: "Os especuladores criaram um cassino em que as fichas eram os estômagos de milhões. O que isto diz do nosso sistema em que podemos, tão casualmente, infligir tanta dor?"

Sem meias palavras, Hari bate duro:

Agora, você provavelmente pensa que a sua opinião sobre o [banco de investimentos] Goldman Sachs e o seu enxame de aliados em Wall Street atingiu o fundo do poço. Você está errado. Há mais. Ocorre que o mais destrutivo dos seus atos mais recentes mal começou a ser discutido. Aqui está o restante. Esta é a história de como algumas das pessoas mais ricas no mundo - Goldman, Deutsche Bank, os corretores na Merrill Lynch e outras - provocaram a fome de algumas das pessoas mais pobres do mundo.

Hari recorda a súbita disparada dos preços dos alimentos em todo o mundo, ocorrida no final de 2006, que em um ano elevou os preços do trigo em 80%, os do milho em 90% e os do arroz em 320%. A consequência direta da alta foi um imediato agravamento do problema da fome no planeta, lançando mais de 200 milhões de pessoas novamente abaixo da linha da desnutrição e provocando motins populares em mais de 30 países.

Segundo ele, a maioria das explicações dadas na época se revelaram falsas. O problema não ocorreu por uma queda de oferta - na verdade, de acordo com o Conselho Internacional de Grãos, a produção global de trigo chegou a aumentar no período. Tampouco houve um problema de demanda, que caiu 3% no período. Houve também a contribuição das safras destinadas à produção de biocombustíveis, como nos EUA, mas as causas reais foram outras.

"Para entender a causa maior, é preciso arar através de alguns conceitos que provocarão dor de cabeça - mas nem a metade da dor provocada nos estômagos dos pobres do mundo", dispara.

Hari descreve, então, o impacto da desregulamentação dos contratos de futuros de alimentos ocorrida na década de 1990, por pressão dos grandes bancos de investimentos como o Goldman Sachs, que transformou tais contratos em "derivativos que podiam ser comprados e vendidos entre operadores que nada tinham a ver com a agricultura", criando um "mercado de especulação com alimentos".

Em linguagem didática, ele explica:

Então, o agricultor Giles ainda pode vender antecipadamente a sua safra a um intermediário por 10 mil libras esterlinas. Mas, agora, esse contrato pode ser vendido a especuladores que o tratam como um objeto de riqueza potencial em si próprio. O Goldman Sachs pode comprá-lo e vendê-lo por 20 mil libras ao Deutsche Bank, que o vende por 30 mil libras ao Merrill Lynch - e assim por diante, até que ele passa quase a não ter mais qualquer relação com a safra do agricultor Giles. (...)

A coisa aconteceu assim. Em 2006, especuladores financeiros como o Goldman saíram fora do mercado hipotecário dos EUA, que estava em colapso. Eles consideraram que os preços dos alimentos permaneceriam estáveis ou subiriam, enquanto o restante da economia vacilava, e transferiram os seus fundos para eles. Subitamente, os assustados investidores do mundo se atiraram nesse campo.

Então, enquanto a oferta e a procura de alimentos se mantinham mais ou menos nos mesmos níveis, a oferta e a procura de derivativos baseados nos alimentos aumentou maciçamente - o que significou uma disparada dos preços e o início da fome. A bolha estourou somente em março de 2008, quando a situação ficou tão ruim nos EUA que os especuladores tiveram que cortar os seus gastos para cobrir os seus prejuízos por lá.

Hari conclui com uma séria - e sombria - advertência:

Se nós não re-regulamentarmos, é apenas uma questão de tempo para que isso aconteça novamente. Quantas pessoas morrerão da próxima vez? As iniciativas para a restauração das regras pré-década de 1990 para o comércio de commodities têm sido espantosamente lentas. Nos EUA, a Câmara dos Deputados aprovou algumas regulamentações, mas receia-se que o Senado - encharcado de contribuições de especuladores - possa diluí-las ao ponto da insignificância. A União Europeia está ainda mais atrás disso, enquanto no Reino Unido, onde ocorre a maior parte desse "comércio", grupos de defesa dos interesses da sociedade estão receosos de que o governo de David Cameron bloqueie inteiramente as reformas, para agradar os seus amigos e contribuintes de campanha na City. Só uma força pode deter outra bolha de especulação e fome. As pessoas decentes nos países desenvolvidos precisam gritar mais alto que os lobistas da Goldman Sachs. (...)

Fatos como os descritos por Hari tornam difícil entender como pessoas educadas e morais ainda acreditam que os jogos especulativos cumprem alguma função econômica positiva e não devam ser devidamente restringidos pelos Estados nacionais, preferencialmente em conjunto. E também demonstram que o retardo na adoção de tais medidas pode ter consequências catastróficas.

Fonte: MSIa

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