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6 de mai. de 2012

A divulgar...



por Reinaldo Azevedo

Eu não gosto da expressão “passar a história a limpo”. Tem apelo inequivocamente totalitário. Fica parecendo que vivemos produzindo rascunhos e que a história verdadeira nos aguarda em algum lugar. Para tanto, teríamos de nos submeter às vontades de um líder, de uma raça, de uma classe ou de partido para atingir, então, aquela verdade verdadeira. A gente sabe aonde isso já deu. Nos milhões de mortos dos vários fascismos e do comunismo. Assim, não existe história a ser “passada a limpo”. Os países que alcançaram a democracia política, como alcançamos, têm é de lutar para tirar da vida pública os corruptos, os aproveitadores e os oportunistas. Isso é “passar a limpo”? Não! isso é melhorar quem somos. Não por acaso, antes que prossiga, noto que Luiz Inácio Lula da Silva é um dos herdeiros dessa visão totalitária supostamente saneadora — daí o seu mentiroso “nunca antes na história destepaiz“, como se fosse o fundador do Brasil.
A CPI do Cachoeira poderia ser — pode ser ainda, a depender do andamento, vamos ver — mais uma dessas oportunidades em que práticas detestáveis dos subterrâneos da política vêm à luz, permitindo punir aqueles que abusaram dos cofres públicos, das instituições e da boa-fé dos brasileiros. Ocorre que há uma boa possibilidade de que isso não aconteça. E por quê? Porque Lula está com ódio. Um ódio injustificado. Um ódio de quem não sabe ser grato. Um ódio de quem não encontra a paz senão exercendo o mando. É ele quem centraliza hoje os esforços para que a CPI se transforme num tribunal de acusação da Procuradoria Geral da República, do Supremo Tribunal Federal e da imprensa independente. E já não esconde isso de seus interlocutores.
A presidente Dilma Rousseff, cujo governo não é do meu gosto — e há centenas de textos dizendo por que não — já deve ter percebido (e, se não o percebeu, então padece de uma grave déficit de atenção política): o risco maior de desestabilização de seu governo não vem da oposição ou do jornalismo que leva a sério o seu trabalho. O nome do risco é Lula.
Ele quer se vingar. Mas se vingar exatamente do quê? Não há explicação racional para o seu rancor, como vou demonstrar abaixo. Já foi, sim, um elemento que ajudou a construir a democracia brasileira — não mais do que isto, friso: uma personagem que participou de sua construção. Nem sempre de modo decoroso. Em momentos cruciais, para fortalecer seu partido, atuou como sabotador. Mas o sistema que se queria edificar era mais forte do que a sua sabotagem. Negou-se a homologar a Constituição; recusou-se a participar do Colégio Eleitoral; opôs-se ao Plano Real; disse “não” às reformas que estão hoje da base da estabilidade que aí está… A lista seria longa. Mesmo assim, ao participar do jogo institucional (ainda que sem ter a devida clareza de sua importância), deu a sua cota. Agora que o regime democrático está estabelecido, Lula se esforça para arrastar na sua pantomima e na do seu partido alguns dos pilares do estado democrático e de direito.
Por quê? Seria seu senso de justiça tão mais atilado do que o da maioria? É a sua intolerância com eventuais falcatruas que o leva hoje a armar setores do seu partido e da base aliada para tentar esmagar a Procuradoria, o Supremo e a imprensa? Não! Lamento ter de escrever que é justamente o contrário: o que move a ação de Lula, infelizmente, é o esforço para proteger os quadrilheiros do mensalão. Uma coisa é certa: outros líderes, antes dele, já deram guarida a bandidos. O PT não fundou a corrupção no Brasil. Mas só Lula e seu partido a transformaram num fundamento ético a depender de quem é o corrupto. Se aliado, é só um herói injustiçado.

Ódio imotivado

E Lula, por óbvio, deveria estar com o coração pacificado, lutando para fortalecer as instituições, não para enfraquecê-las. Um conjunto de circunstâncias — somadas a suas qualidades pessoais (e defeitos influentes) — fez dele o que é. Em poucas pessoas, o casamento da “virtù” com a “fortuna” foi tão bem-sucedido. O menino pobre, retirante, tornou-se presidente da República, eleito e reeleito, admirado país e mundo afora. Podemos divergir — e como divergimos! — dessa avaliação, mas nada disso muda o fato objetivo. Quantos andaram ou andarão trajetória tão longa do ponto de partida ao ponto de chegada?
Lula deveria ser grato aos aliados e também aos adversários. Qualquer um que tenha um entendimento mediano da história sabe como os oponentes ajudam a formar a têmpera do líder, oferecendo-lhe oportunidades. Não há, do ponto de vista do Apedeuta, o que corrigir no roteiro. O destino lhe foi extremamente generoso. Sua alma deveria estar em festa. E, no entanto, ele sai proclamando por aí que chegou a hora de ajustar as contas. Com quem? Com quê?
Não farei aqui a linha ingênuo-propositiva, sugerindo que o ex-presidente deixe a CPI trabalhar sem orientação partidária, investigando quem tem de ser investigado, ignorando que há forças políticas em ação e que é parte do jogo a sua articulação para se defender e atacar. Isso é normal no jogo democrático. O que não é aceitável é esse esforço para eliminar todas as outras — à falta de melhor designação, ficarei com esta — “instâncias de verdade” da sociedade. Instâncias que são, reitero, instituições basilares da democracia.
Lula e seus sectários chegaram ao ponto em que acreditam que o PT não pode conviver com uma Procuradoria-Geral da República que não seja um braço do partido; com um Supremo Tribunal Federal que não seja uma seção do partido; com uma imprensa que não seja uma das extensões do partido. Todos eles têm de ser desmoralizados para que, então, o PT surja no horizonte realizando a sua vocação: SER A ÚNICA INSTÂNCIA DE VERDADE. Na conversa que manteve anteontem com petistas, em que anunciou — POR CONTA PRÓPRIA — que o governo vai avançar sobre a mídia, Rui Falcão, presidente do PT, foi claríssimo:
“(a mídia) é um poder que contrasta com o nosso governo desde a subida do (ex-presidente) Lula, e não contrasta só com o projeto político e econômico. Contrasta com o atual preconceito, ao fazer uma campanha fundamentalista como foi a campanha contra a companheira Dilma (nas eleições presidenciais de 2010).”
Ou por outra: o bando heavy metal do PT considera que as instituições da democracia ocupam o seu espaço vital, sufocam-no. Se o partido foi vitorioso e chegou ao poder segundo os instrumentos democráticos, uma vez no topo, é preciso começar a eliminá-los. Esses petistas entendem a política segundo uma linha supostamente evolutiva de que eles seriam os mais aptos. Qualquer outra possibilidade significa um retrocesso. É um mito da velha esquerda, herdado, sim, lá do marxismo — ainda que o partido não seja mais marxista nos fundamentos econômicos. Da velha teoria, herdou a paixão pelo totalitarismo.

Já vimos isso antes e alhures

Já vimos isso antes na história. Na América Latina, a Argentina assiste a um processo ainda mais agressivo, conforme revela matéria da VEJA na edição desta semana (falo a respeito em outro post). Os regimes autoritários ou a depredação da democracia não surgem sem justificativas verossímeis e sem o apoio de muitos inocentes úteis e inúteis. Procedimentos corriqueiros do jogo democrático e do confronto de ideias começam a ser ideologicamente demonizados para que venham a ser considerados crimes. Voltem à fala de Rui Falcão. A simples disputa eleitoral, para ele, é chamada de “manifestação de preconceito” das oposições. A vigilância que toda imprensa deve exercer numa democracia é tratada como ato de sabotagem do governo. E ninguém estranha, é evidente, que VEJA esteja entre os alvos preferenciais dos autoritários.
Aqui e ali alguns tontos se divertem um tatinho achando que a pinima de Lula e de seus extremistas é com a revista em particular. Não é, não! É com a imprensa livre. Se VEJA está entre seus alvos preferenciais, deve ser porque foi o veículo que mais o incomodou. Então se tira da algibeira a acusação obviamente falsa, comprovadamente falsa, de que a publicação participou de conspirações contra esse ou aquele. Ora, digam aí os nomes dos patriotas, com carreiras impolutas, que foram vítimas desse ente tão terrível (leiam post abaixo). VEJA não convidou os malandros do mensalão a fazer malandragens. Também não patrocinou as sem-vergonhices no Dnit. Também não responde pela montanha de dinheiro liberado que não se transformou nem em estradas nem em obras de reparo. A revista relatou essas safadezas. Com quem falou para obter informações que eram do interesse de quem me lê de outros milhões de brasileiros? Isso não é da conta de Lula! Ele, como sabemos, só dialoga com a fina flor do pensamento… Só que há uma diferença importante: um jornalista que se respeita não fala com vigaristas para ser ou manter o poder. Se o faz, é para denunciar o poder! E assim foi, o que rendeu a demissão de corruptos e a preservação do patrimônio público.
É claro que isso excita a fúria dos totalitários. Na Argentina, a tropa de Cristina Kirchner costuma ser ainda mais criativa — e, em certa medida, grosseira — do que seus pares brasileiros. Por lá, a agressão à imprensa chegou mais longe. Começou com uma rusga com o Clarín, que apoiava o casal Kirchner. Agora, trata-se de um confronto com o jornalismo livre. A exemplo do que ocorre no Brasil, uma verdadeira horda está mobilizada pelo oficialismo para destruir a democracia. Também lá, a subimprensa alugada pelo poder, conduzida por anões morais, ajuda a fazer o serviço sujo.

Voltando e caminhando para a conclusão

Lula e seus extremistas estão indo longe demais! Quando um secretário-geral da Presidência reúne deputados e senadores do seu partido, como fez Gilberto Carvalho, para determinar que o centro das preocupações da CPI deve ser o mensalão, esse ministro já não se ocupa mais do governo, mas de um projeto de esmagamento da boa ordem democrática; esse ministro não demonstra interesse em identificar e pedir que a Justiça puna os corruptos, mas em impedir que outros corruptos sejam punidos. E por quê?
Porque Lula está com ódio? De várias maneiras, o seu conhecido projeto continuísta se mostra, hoje, impossível. Não é surpresa para ninguém que mais apostavam no naufrágio de Dilma algumas alas do PT que nunca a consideraram petista o suficiente do que propriamente a oposição. Estaria eu flertando com o governo, como disseram alguns tontos? Ah, tenham paciência! Não mudei um milímetro a minha avaliação sobre a gestão Dilma Rousseff e sempre escrevi aqui — vejam lá! — que as denúncias de lambanças feitas pela imprensa livre, seguidas das demissões, fariam bem à sua imagem e à sua reputação. Está em arquivo. Sei o que escrevo e tenho, alguns podem lamentar, uma memória impecável. Assim, a presidente não me decepciona porque eu não esperava mais do que isso. Também não me surpreende porque eu não esperava menos do que isso. Contrariados estão alguns fanáticos do petismo que acreditam que há certos “trancos” na democracia que só podem ser dados por Lula. Sim, eles têm razão. Infeliz E felizmente, só Lula poderia fazer certas coisas. E não vai fazê-las. Não se enganem, não! A avaliação de Dilma lá nas alturas surpreende e decepciona os que apostavam no retorno de Lula. Eu não tenho nada com isso porque nunca fui dessa religião… Ou melhor: até fui, quando era menino e pensava como menino, como diria o apóstolo Paulo… Depois eu cresci.
Lula tenta instrumentalizar essa CPI para realizar a obra que não conseguiu realizar quando era presidente: destruir de vez a oposição, botar uma canga na imprensa e “passar a história a limpo”, segundo o padrão do revisionismo petista. Mas a democracia — e ele tantas vezes foi personagem minúscula de sua construção, quando poderia ter sido maiúscula — não vai deixar. Não conseguirá arrastar as instituições em seu delírio totalitário. Tenham a certeza, leitores: por mais que o cerco pareça sugerir o contrário, esse coro do ódio é expressão de uma luta perdida. E a luta foi perdida por eles, não pelos amantes da democracia.

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