por Reinaldo Azevedo
Eu não gosto da expressão “passar a história a limpo”. Tem apelo
inequivocamente totalitário. Fica parecendo que vivemos produzindo rascunhos e
que a história verdadeira nos aguarda em algum lugar. Para tanto, teríamos de
nos submeter às vontades de um líder, de uma raça, de uma classe ou de partido
para atingir, então, aquela verdade verdadeira. A gente sabe aonde isso já deu.
Nos milhões de mortos dos vários fascismos e do comunismo. Assim, não existe
história a ser “passada a limpo”. Os países que alcançaram a democracia
política, como alcançamos, têm é de lutar para tirar da vida pública os
corruptos, os aproveitadores e os oportunistas. Isso é “passar a limpo”? Não!
isso é melhorar quem somos. Não por acaso, antes que prossiga, noto que Luiz
Inácio Lula da Silva é um dos herdeiros dessa visão totalitária supostamente
saneadora — daí o seu mentiroso “nunca antes na história destepaiz“, como se
fosse o fundador do Brasil.
A CPI do Cachoeira poderia ser — pode ser ainda, a depender do
andamento, vamos ver — mais uma dessas oportunidades em que práticas
detestáveis dos subterrâneos da política vêm à luz, permitindo punir aqueles
que abusaram dos cofres públicos, das instituições e da boa-fé dos brasileiros.
Ocorre que há uma boa possibilidade de que isso não aconteça. E por quê? Porque
Lula está com ódio. Um ódio injustificado. Um ódio de quem não sabe ser grato.
Um ódio de quem não encontra a paz senão exercendo o mando. É ele quem
centraliza hoje os esforços para que a CPI se transforme num tribunal de
acusação da Procuradoria Geral da República, do Supremo Tribunal Federal e da
imprensa independente. E já não esconde isso de seus interlocutores.
A presidente Dilma Rousseff, cujo governo não é do meu gosto — e
há centenas de textos dizendo por que não — já deve ter percebido (e, se não o
percebeu, então padece de uma grave déficit de atenção política): o risco maior
de desestabilização de seu governo não vem da oposição ou do jornalismo que
leva a sério o seu trabalho. O nome do risco é Lula.
Ele quer se vingar. Mas se vingar exatamente do quê? Não há
explicação racional para o seu rancor, como vou demonstrar abaixo. Já foi, sim,
um elemento que ajudou a construir a democracia brasileira — não mais do que
isto, friso: uma personagem que participou de sua construção. Nem sempre de
modo decoroso. Em momentos cruciais, para fortalecer seu partido, atuou como
sabotador. Mas o sistema que se queria edificar era mais forte do que a sua
sabotagem. Negou-se a homologar a Constituição; recusou-se a participar do
Colégio Eleitoral; opôs-se ao Plano Real; disse “não” às reformas que estão
hoje da base da estabilidade que aí está… A lista seria longa. Mesmo assim, ao
participar do jogo institucional (ainda que sem ter a devida clareza de sua
importância), deu a sua cota. Agora
que o regime democrático está estabelecido, Lula se esforça para arrastar na
sua pantomima e na do seu partido alguns dos pilares do estado democrático e de
direito.
Por quê? Seria seu senso de justiça tão mais atilado do que o da
maioria? É a sua intolerância com eventuais falcatruas que o leva hoje a armar
setores do seu partido e da base aliada para tentar esmagar a Procuradoria, o
Supremo e a imprensa? Não! Lamento ter de escrever que é justamente o
contrário: o que
move a ação de Lula, infelizmente, é o esforço para proteger os quadrilheiros
do mensalão. Uma coisa é certa: outros líderes, antes dele, já
deram guarida a bandidos. O PT não fundou a corrupção no Brasil. Mas só Lula e
seu partido a transformaram num fundamento ético a depender de quem é o
corrupto. Se aliado, é só um herói injustiçado.
Ódio imotivado
E Lula, por óbvio, deveria estar com o coração pacificado, lutando para fortalecer as instituições, não para enfraquecê-las. Um conjunto de circunstâncias — somadas a suas qualidades pessoais (e defeitos influentes) — fez dele o que é. Em poucas pessoas, o casamento da “virtù” com a “fortuna” foi tão bem-sucedido. O menino pobre, retirante, tornou-se presidente da República, eleito e reeleito, admirado país e mundo afora. Podemos divergir — e como divergimos! — dessa avaliação, mas nada disso muda o fato objetivo. Quantos andaram ou andarão trajetória tão longa do ponto de partida ao ponto de chegada?
Lula deveria ser grato aos aliados e também aos adversários.
Qualquer um que tenha um entendimento mediano da história sabe como os
oponentes ajudam a formar a têmpera do líder, oferecendo-lhe oportunidades. Não
há, do ponto de vista do Apedeuta, o que corrigir no roteiro. O destino lhe foi
extremamente generoso. Sua alma deveria estar em festa. E , no entanto, ele
sai proclamando por aí que chegou a hora de ajustar as contas. Com quem? Com
quê?
Não farei aqui a linha ingênuo-propositiva, sugerindo que o
ex-presidente deixe a CPI trabalhar sem orientação partidária, investigando
quem tem de ser investigado, ignorando que há forças políticas em ação e que é
parte do jogo a sua articulação para se defender e atacar. Isso é normal no
jogo democrático. O
que não é aceitável é esse esforço para eliminar todas as outras — à falta de
melhor designação, ficarei com esta — “instâncias de verdade” da sociedade.
Instâncias que são, reitero, instituições basilares da democracia.
Lula e seus sectários chegaram ao ponto em que acreditam que o PT
não pode conviver com uma Procuradoria-Geral da República que não seja um braço
do partido; com um Supremo Tribunal Federal que não seja uma seção do partido;
com uma imprensa que não seja uma das extensões do partido. Todos eles têm de ser
desmoralizados para que, então, o PT surja no horizonte realizando a sua
vocação: SER A ÚNICA INSTÂNCIA DE VERDADE. Na conversa que
manteve anteontem com petistas, em que anunciou — POR CONTA PRÓPRIA — que o
governo vai avançar sobre a mídia, Rui Falcão, presidente do PT, foi
claríssimo:
“(a mídia) é um poder que contrasta com o nosso governo desde a subida do (ex-presidente) Lula, e não contrasta só com o projeto político e econômico. Contrasta com o atual preconceito, ao fazer uma campanha fundamentalista como foi a campanha contra a companheira Dilma (nas eleições presidenciais de 2010).”
“(a mídia) é um poder que contrasta com o nosso governo desde a subida do (ex-presidente) Lula, e não contrasta só com o projeto político e econômico. Contrasta com o atual preconceito, ao fazer uma campanha fundamentalista como foi a campanha contra a companheira Dilma (nas eleições presidenciais de 2010).”
Ou por outra: o bando heavy
metal do PT considera que as instituições da democracia ocupam o
seu espaço vital, sufocam-no. Se o partido foi vitorioso e chegou ao poder
segundo os instrumentos democráticos, uma vez no topo, é preciso começar a
eliminá-los. Esses petistas entendem a política segundo uma linha supostamente
evolutiva de que eles seriam os mais aptos. Qualquer outra possibilidade
significa um retrocesso. É um mito da velha esquerda, herdado, sim, lá do
marxismo — ainda que o partido não seja mais marxista nos fundamentos
econômicos. Da velha teoria, herdou a paixão pelo totalitarismo.
Já vimos isso antes e alhures
Já vimos isso antes na história. Na América Latina, a Argentina assiste a um processo ainda mais agressivo, conforme revela matéria da VEJA na edição desta semana (falo a respeito em outro post). Os regimes autoritários ou a depredação da democracia não surgem sem justificativas verossímeis e sem o apoio de muitos inocentes úteis e inúteis. Procedimentos corriqueiros do jogo democrático e do confronto de ideias começam a ser ideologicamente demonizados para que venham a ser considerados crimes. Voltem à fala de Rui Falcão. A simples disputa eleitoral, para ele, é chamada de “manifestação de preconceito” das oposições. A vigilância que toda imprensa deve exercer numa democracia é tratada como ato de sabotagem do governo. E ninguém estranha, é evidente, que VEJA esteja entre os alvos preferenciais dos autoritários.
Aqui e ali alguns tontos se divertem um tatinho achando que a
pinima de Lula e de seus extremistas é com a revista em particular. Não é,
não! É com a imprensa livre. Se VEJA está entre seus alvos preferenciais, deve
ser porque foi o veículo que mais o incomodou. Então se tira da algibeira a
acusação obviamente falsa, comprovadamente falsa, de que a publicação
participou de conspirações contra esse ou aquele. Ora, digam aí os nomes dos
patriotas, com carreiras impolutas, que foram vítimas desse ente tão terrível (leiam post abaixo). VEJA
não convidou os malandros do mensalão a fazer malandragens. Também não
patrocinou as sem-vergonhices no Dnit. Também não responde pela montanha de
dinheiro liberado que não se transformou nem em estradas nem em obras de
reparo. A revista relatou essas safadezas. Com quem falou para obter
informações que eram do interesse de quem me lê de outros milhões de
brasileiros? Isso não é da conta de Lula! Ele, como sabemos, só dialoga com a
fina flor do pensamento… Só que há uma diferença importante: um jornalista que
se respeita não fala com vigaristas para ser ou manter o poder. Se o faz, é
para denunciar o poder! E assim foi, o que rendeu a demissão de corruptos e a
preservação do patrimônio público.
É claro que isso excita a fúria dos totalitários. Na Argentina, a
tropa de Cristina Kirchner costuma ser ainda mais criativa — e, em certa
medida, grosseira — do que seus pares brasileiros. Por lá, a agressão à
imprensa chegou mais longe. Começou com uma rusga com o Clarín, que apoiava o
casal Kirchner. Agora, trata-se de um confronto com o jornalismo livre. A
exemplo do que ocorre no Brasil, uma verdadeira horda está mobilizada pelo
oficialismo para destruir a democracia. Também lá, a subimprensa alugada pelo
poder, conduzida por anões morais, ajuda a fazer o serviço sujo.
Voltando e caminhando para a conclusão
Lula e seus extremistas estão indo longe demais! Quando um secretário-geral da Presidência reúne deputados e senadores do seu partido, como fez Gilberto Carvalho, para determinar que o centro das preocupações da CPI deve ser o mensalão, esse ministro já não se ocupa mais do governo, mas de um projeto de esmagamento da boa ordem democrática; esse ministro não demonstra interesse em identificar e pedir que a Justiça puna os corruptos, mas em impedir que outros corruptos sejam punidos. E por quê?
Porque Lula está com ódio? De várias maneiras, o seu conhecido
projeto continuísta se mostra, hoje, impossível. Não é surpresa para ninguém
que mais apostavam no naufrágio de Dilma algumas alas do PT que nunca a
consideraram petista o suficiente do que propriamente a oposição. Estaria
eu flertando com o governo, como disseram alguns tontos? Ah, tenham
paciência! Não mudei um milímetro a minha avaliação sobre a gestão Dilma
Rousseff e sempre escrevi aqui — vejam lá! — que as denúncias de lambanças
feitas pela imprensa livre, seguidas das demissões, fariam bem à sua imagem e à
sua reputação. Está em
arquivo. Sei o que escrevo e tenho, alguns podem lamentar,
uma memória impecável. Assim, a presidente não me decepciona porque eu não
esperava mais do que isso. Também não me surpreende porque eu não esperava
menos do que isso. Contrariados estão alguns fanáticos do petismo que acreditam
que há certos “trancos” na democracia que só podem ser dados por Lula. Sim,
eles têm razão. Infeliz E
felizmente, só Lula poderia fazer certas coisas. E não vai fazê-las. Não se
enganem, não! A avaliação de Dilma lá nas alturas surpreende e decepciona os
que apostavam no retorno de Lula. Eu não tenho nada com isso porque nunca fui
dessa religião… Ou melhor: até fui, quando era menino e pensava como menino,
como diria o apóstolo Paulo… Depois eu cresci.
Lula
tenta instrumentalizar essa CPI para realizar a obra que não conseguiu realizar
quando era presidente: destruir de vez a oposição, botar uma canga na imprensa
e “passar a história a limpo”, segundo o padrão do revisionismo petista. Mas a
democracia — e ele tantas vezes foi personagem minúscula de sua construção, quando
poderia ter sido maiúscula — não vai deixar. Não conseguirá arrastar as
instituições em seu delírio totalitário. Tenham a certeza, leitores: por mais
que o cerco pareça sugerir o contrário, esse coro do ódio é expressão de uma
luta perdida. E a luta foi perdida por eles, não pelos amantes da democracia.
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