por Kátia Abreu
Alceu
Amoroso Lima anotava como uma das distorções de origem do Brasil o fato de que
aqui o Estado surgiu antes da nação. Antes de haver povo, que seria importado
de Portugal e da África, já o Estado colonial se instalava com suas leis e
privilégios.
Não
é casual que nosso primeiro cronista, Pero Vaz de Caminha, fosse um escrivão da
Corte a chancelar a presença, ainda hoje atuante, do Estado cartorial. Na carta
em que descreve suas impressões do Brasil, pede, a certa altura, um emprego na
Corte para um sobrinho que estava na África. Dava curso, assim, a um costume
ainda atual. "Senhor, nesta terra todos roubam" --começava assim,
mais de dois séculos depois, em 1724, um relatório do coronel Luís Vahia
Monteiro, nomeado governador do Rio de Janeiro pelo rei dom João 5º, preocupado
com a crescente redução de receitas públicas na colônia sul-americana.
Roubo.
Vahia,
apelidado de "o Onça" pela ferocidade com que combatia a corrupção,
era coronel da infantaria do Reino. O rei, que lhe tinha cega confiança,
incumbiu-o da missão de promover uma faxina moral na administração da colônia.
Nada de novo, não é? Após minuciosa vistoria, Onça concluiu o que está em
síntese na frase com que iniciou o seu relatório. É uma frase que, nos três
ciclos da história política do país --colônia, monarquia e república--, jamais
perdeu atualidade.
Não,
não se trata de um traço perverso do caráter do brasileiro, até porque somos
uma mescla de muitas culturas e etnias. Até fins do século 19, nossa população
era fruto da presença de três povos: o índio, o europeu ibérico e o africano
--e da mestiçagem que daí resultava. Já no final daquele século, novas
correntes migratórias aqui aportaram: japoneses, alemães, libaneses, poloneses,
italianos etc., mudando o perfil da população. Também esses povos se
miscigenaram aos que aqui encontraram, mas os padrões de gestão da coisa
pública não mudaram muito.
O
que explicaria isso? Chegou-se até a cogitar que a mestiçagem gerava perversões
insanáveis, que explicariam, entre outras coisas, a corrupção brasileira. Como
a corrupção é um fenômeno universal e atemporal, a tese não teve curso. Sem
pretender simplificar algo tão complexo, arrisco a dizer que a onipresença do
Estado, que perpassa as diversas fases históricas do país --e é também uma
moléstia planetária--, é uma das razões fundamentais do desconcerto brasileiro.
Quanto
mais Estado, menor governabilidade --e, em decorrência, maior chance para a
corrupção. O Estado, quando extrapola as funções para as quais foi criado,
torna-se um agente da corrupção. É como o dito popular sobre a esperteza:
quando é muita, vira bicho e come o dono.
O
Estado brasileiro agigantou-se nos últimos tempos. Já se havia hipertrofiado ao
tempo do presidente Geisel, que criou mais estatais que a soma de seus
antecessores. Houve, na sequência da redemocratização, pálidas iniciativas reformistas,
visando a reduzi-lo e a enquadrá-lo nas suas efetivas atribuições. Mas o vício
de origem, citado por Alceu Amoroso Lima, parece falar mais alto. Privatização,
ignorada por seus detratores, tornou-se palavrão e arma de intimidação
eleitoral.
O
lema fascista e comunista --"tudo pelo Estado, tudo para o Estado e nada
fora do Estado"-- é uma realidade cultural brasileira desde os tempos do
Onça, contaminando a economia, o empreendedorismo e a moral no trato da coisa
pública. Que adianta combater os mensalões sem ir à origem da moléstia?
Combate-se o sintoma, e não a doença, que, no caso brasileiro, chama-se Estado
hipertrofiado. É como enxugar o chão com a torneira aberta.
A
corrupção só será sanada (na medida em que isso é possível) quando o país
promover aquela que é a prioridade das prioridades: a reforma efetiva do
Estado. Aí, sim, começaremos a enfrentar de fato as moléstias que decorrem de
seu gigantismo: corrupção, burocracia, crise federativa, engessamento da
economia, bagunça tributária e, sobretudo, o abismo entre povo e nação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário